Crime de facilitação de descaminho e competência da Justiça Estadual

A circulação de produto nacional dentro do território brasileiro, com ilusão de pagamento de tributo estadual, não caracteriza crime de descaminho, de modo que a conduta do servidor público que, em violação de dever funcional, facilita tal circulação não configura o crime de facilitação de contrabando ou descaminho a justificar a competência da Justiça Federal, podendo, conforme as circunstâncias e o dolo do agente, configurar outros delitos, inclusive o crime de prevaricação, de competência estadual.

5/24/20253 min read

A questão em discussão consiste em definir se a Justiça Federal é competente para processar o crime de facilitação de descaminho, quando a conduta envolve apenas a ilusão de tributo estadual em circulação interna de mercadoria nacional.

No caso, a denúncia narra a facilitação de entrada de batatas provenientes de Minas Gerais no Estado de Alagoas, com ilusão de pagamento de imposto estadual.

Em sua redação original, o art. 334 do Código Penal tipificava concomitantemente o contrabando e o descaminho, sendo evidente que a segunda conduta, ainda que diversa da primeira, estava inserida no mesmo contexto, qual seja, o ingresso ou saída de mercadoria através da fronteira nacional.

Embora o advento da Lei n. 13.008/2014 tenha acarretado a cisão do tipo penal do art. 334 do CP em dois tipos penais autônomos - descaminho (art. 334 do CP) e contrabando (art. 334-A do CP) -, a conduta tipificada como descaminho não perdeu sua característica originária, tendo como escopo evitar a evasão de tributos aduaneiros, sejam eles federais ou estaduais, em um contexto de transposição de fronteira.

É certo que a redação atual do art. 334-A do CP, especificamente em seu caput, pode dar margem a uma interpretação mais ampla do tipo, na medida em que refere não só à entrada e saída de produtos, mas ao próprio consumo, circunstância que, em tese, poderia conduzir ao entendimento de que seria possível perpetrar esse crime pela ilusão de tributo estadual isoladamente, decorrente da sua circulação interna em território nacional, hipótese em que inexistiria interesse da União.

Sucede que a própria exposição de motivos do projeto que culminou na Lei n. 13.008/2014 deixa claro que o objetivo do legislador não foi ampliar o tipo do descaminho para além de sua concepção originária, mas aumentar as penas e atualizar o tipo de modo a abarcar outras formas de transposição de fronteiras (fluvial e marítimo).

Essa convicção é reforçada pela leitura das condutas equiparadas previstas pelo legislador nos §§ 1º e 2º do art. 334 do CP, nas quais se verifica, em quase toda a totalidade das hipóteses preconizadas, a menção a circulação de mercadorias estrangeiras.

Nesse cenário, não é possível tipificar a circulação de mercadoria nacional, dentro do território brasileiro, como descaminho, ainda que a circulação ou consumo tenha implicado ilusão de pagamento de tributo estadual, sendo adequado o uso de tipo penal específico para coibir essa conduta (sonegação fiscal).

Em outras palavras, a alteração legislativa promovida pela Lei n. 13.008/2014 não ampliou o tipo penal de descaminho a ponto de abarcar operações internas de circulação de mercadorias nacionais com ilusão de pagamento de tributo estadual.

Portanto, a conduta imputada ao réu não configura facilitação de descaminho, pois não envolve mercadoria estrangeira ou transposição de fronteira nacional, mas, sim, facilitação de circulação de produto nacional objeto de sonegação de tributo estadual, podendo caracterizar outros crimes, a depender das circunstâncias e do dolo do agente, inclusive crime de prevaricação.

Assim, os autos devem retornar ao Tribunal de Justiça estadual, a fim de que aquela Corte prossiga no julgamento da apelação, inclusive reclassificando a conduta imputada ao réu mediante aplicação da técnica de emendatio libelli (art. 383 do CPP), afastada a possibilidade de tipificação da conduta no art. 318 do CP.

CC 210.869-AL, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 9/4/2025, DJEN 15/4/2025.

Informações Adicionais

Legislação

Código Penal (CP), art. 318

Lei n. 13.008/2014

Súmulas

Súmula n. 151/STJ