Não se mostra razoável enquadrar a mãe biológica em nenhuma das hipóteses de perda do poder familiar previstas no art. 1.638 do Código Civil, por ter sido vítima de violência sexual no ambiente doméstico aos quatorze anos de idade e não lhe ter sido oportunizado apoio estatal para ter a criança consigo enquanto permaneceu acolhida institucionalmente.
Processo em segredo de justiça, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 12/8/2025. Ação de destituição do poder familiar cumulada com Adoção. Mãe biológica adolescente, vítima de violência sexual no ambiente doméstico. Requisitos do art. 1.638 do CC. Ausência. Guarda provisória da menor com família substituta há mais de 10 anos. Reconhecimento da multiparentalidade. Melhor interesse da criança.
8/20/20252 min read


Trata-se, na origem, de ação de destituição do poder familiar cumulada com adoção na qual se pleiteou a procedência da ação sob o fundamento de que a criança nunca teve contato com a família biológica, estando plenamente inserida no núcleo familiar dos adotantes. A parte recorrente defende que a negativa de adoção, sob o pretexto de preservar-se o vínculo biológico, com fundamento no reconhecimento da multiparentalidade, não só ignora a realidade afetiva consolidada mas também impõe à menina uma situação de instabilidade emocional.
Nesse contexto, cinge-se a controvérsia a saber se é possível o reconhecimento da multiparentalidade no caso, ou se a destituição do poder familiar é a melhor solução.
O caso apresenta uma situação peculiar, em que foram vítimas todos os envolvidos, principalmente a própria genitora, que foi mãe aos 14 anos de idade, vítima de violência sexual pelo padrasto no ambiente doméstico e, além disso, estava em situação de risco na companhia da mãe que foi diagnosticada com esquizofrenia.
Portanto, não teve apoio familiar, nem do Estado, para enfrentar a delicada situação. A adolescente não tinha discernimento para consentir com a adoção, tampouco tinha conhecimento de que poderia ficar acolhida institucionalmente juntamente com sua filha.
Por outro lado, a menor está sob a guarda dos adotantes desde os primeiros dias de vida, há aproximadamente dez anos, tempo em que criou laços afetivos com o casal, consolidando reciprocamente a relação filial, de modo que a alteração no quadro atual afetaria seu estado emocional e desenvolvimento psicológico.
Em que pesem os adotantes, ora agravantes, terem recebido a criança por intermédio do Poder Público, em absoluta e inequívoca regularidade do procedimento adotivo, não se pode ignorar que o contexto fático apresentado não se mostra adequado para enquadrar a recorrida, ora agravada, em nenhuma das hipóteses de perda do poder familiar previstas no art. 1.638 do Código Civil.
Isso, porque, observando-se atentamente o contexto dos autos, não é possível considerar tenha havido o abandono espontâneo da criança, nem o descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar com submissão voluntária da menor a situação de risco.
Assim, a melhor solução é a multiparentalidade, com o reconhecimento da paternidade socioafetiva dos requerentes sem a perda do poder familiar da genitora, preservando-se a guarda dos recorrentes, mas assegurando-se o direito de visitas à mãe biológica, medida adotada em observância ao princípio do melhor interesse da menor.
Trata-se de entendimento firmado à luz da tese fixada em sede de repercussão geral pelo eg. Supremo Tribunal Federal a respeito da multiparentalidade, que estabeleceu que "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (RE 898.060/SC, Relator: Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 21/9/2016, Processo Eletrônico Repercussão Geral - Mérito - DJe-187 Divulg. 23-8-2017 Public. 24-8-2017).
Informações Adicionais
Legislação
Código Civil (CC), art. 1.638